Gratidão ou egoísmo disfarçado?

Gratidão ou egoísmo disfarçado?

O mesmo dualismo que divide o mundo em partes desiguais também nos separa de uma parte de nós mesmos. Incompletos, procuramos preencher esse vazio com cada vez mais: mais dinheiro, mais bens materiais, mais fé, mais ego e vaidade. E como num ciclo vicioso de conquista e controle, o desejo de possuir só reforça essa alienação da vida.

A origem das crises mundiais não é o egoísmo ou a ganância, e a solução não é se esforçar, se sacrificar ou ter ainda mais autocontrole. Tais soluções foram criadas com a mentalidade de escassez implícita na quantificação e monetização do mundo, que reduz o infinito em algo finito e nos motiva a acumular e a guardar; ter e possuir; vigiar e defender; cercar e controlar.

Considere a mentalidade oposta: “As coisas boas existem em abundância e há o bastante para todos. Minhas necessidades são bem supridas e posso obter qualquer coisa que precisar.” Alguém que pensa assim não tem porque possuir, guardar ou controlar, pois há sempre o bastante para todos. A generosidade é intuitivamente associada a um comportamento inocente ou ingênuo, mas, à medida que se mergulha em uma realidade pautada na abundância, percebemos que compartilhar é natural. Quando abandonamos o conceito de “meu”, dividir se torna algo espontâneo.

Claro, há quem enxergue essa “generosidade” por um viés econômico, em termos de custos e benefícios. Assim, um presente (ou favor) é visto como um instrumentos de competição, algo que visa estimular futuros retornos, ou seja, um meio de gerar prestígio e cultivar a reputação como “garantia” em tempos de crise — o famoso “te devo uma”. Embora esses sentimentos existam, considerá-los como principais motivadores é projetar nossas próprias tendências culturais. Não por acaso, tal projeção é ideologicamente necessária para justificar um paradigma de separação entre Eu e o “outro”, assim como sua consequente distorção de gratidão em egoísmo disfarçado.

Minha intenção é te mostrar que o problema não é o egoísmo, mas nossa atual concepção do Eu e suas fronteiras imaginárias. Em outras palavras, nosso egoísmo não é eficaz porque confundimos o beneficiário — não se trata do “eu”, mas do “nós” e do “todo”. Da mesma forma que não existe árvore se não houver Sol, ar, terra, animais, não existiríamos se não fosse um enorme conjunto de fatores perfeitamente ajustados. Se somos um, por que ainda alimentamos essa ilusão de separação?

 

A influência das instituições e normas sociais

Qual a diferença entre uma cultura “boa” (pacífica, igualitária e amigável) e outra “má” (violenta, cruel, competitiva e hierárquica)? Segundo a antropóloga Ruth Benedict, as instituições e normas sociais de culturas pacíficas tendem não só a reforçar ações que beneficiem o grupo como um todo, mas também reprimir aquelas que prejudicam alguém. Culturas agressivas, por outro lado, tendem a recompensar ações que visam o ganho individual, mesmo quando prejudicam outros no grupo.

No contexto de culturas pacíficas, a ideia de propriedade (algo pra chamar de “meu”) ainda existe, mas as instituições e normas sociais inibem sua acumulação. Analogamente, mecanismos globais de compartilhamento tendem a tornar o acúmulo e a concentração de propriedade em algo irracional. Porém, antes de sugerir que precisamos mudar nossas instituições e normas sociais, vale a pena investigar e entender as circunstâncias que nos levaram à situação atual.

Para manter uma sociedade igualitária, culturas primitivas de caça e coleta dependiam de mecanismos sociais realmente complexos, mas que surgiram naturalmente a partir do seu próprio conceito de identidade — ainda não definido como algo discreto ou separado. O processo de Separação dualista ao longo do período Paleolítico, que culminou na noção de propriedade, foi fundamental na tradução de mecanismos sociais em “regras e tabus”: uma versão primitiva do nosso conjunto de “normas sociais civilizadas”.

Portanto, não se pode esperar uma mudança tão profunda em nossas instituições e normas sociais sem apoio da estrutura apropriada: uma noção mais abrangente de identidade, isto é, a ampliação das fronteiras do “Eu” para além da própria pele. No contexto de uma identidade distorcida e limitada, o tal egoísmo se torna confuso. Nossos próprios interesses se transformaram em algo ambíguo e passível de julgamento aos olhos da sociedade, que ignora seu aspecto racional e útil. Na verdade, o que experimentamos hoje é um tipo de egoísmo superficial, que vai contra nossos reais interesses.

Conter nosso lado destrutivo não se resume a “dominar impulsos egocêntricos”, como se fossem inatos ou inevitáveis, mas serve como oportunidade para refletir sobre quem realmente somos. Ora, enquanto não soubermos quem somos, nenhum comportamento egoísta será capaz de nos beneficiar — vide a constante insatisfação humana.

 

A vida percebida como competição

Se o mundo fosse uma arena, e a vida, uma competição, todo e qualquer esforço para se tornar um “vencedor” seria justificável. São inúmeras as vítimas desse tipo de cultura competitiva, mas não há por que culpar os “vitoriosos” quando a única alternativa, segundo sua mentalidade binária, é se juntar às vítimas. Se acreditamos que a vida é “matar ou morrer”, como podemos julgar alguém que pensa em si mesmo? Nesse contexto, um sistema ético deveria estimular a caridade dos “vencedores”, criando programas de bem-estar social, preservação ambiental e limites para evitar uma vitória esmagadora sobre os fracassados. Afinal, sem “fracassados” não há quem seja “bem sucedido”.

Claro, temos também aqueles que decidem viver propositalmente entre os “fracassados”, alegando um nobre sacrifício de seus privilégios para demonstrar sua bondade. A menos que alguém seja um santo, essa postura de sacrifício com ares de altruísmo tende a gerar ressentimento contra todos que optaram por aproveitar os privilégios de ser “vencedor”. Entre egoístas e altruístas, por que assumimos que os “vencedores” são, realmente, vencedores? Afinal, ser capaz de satisfazer os próprios interesses não garante estabilidade e, muito menos, felicidade.

Não gaste seu tempo e energia lutando contra ricos e poderosos. Como os Bolcheviques demonstraram, não se muda muita coisa quando a uma “elite privilegiada” é derrubada. Além disso, a raiva é sempre improdutiva. A mensagem por trás de muitos discursos ativistas é “Não pense só em você” ou “Você é mau por se colocar em primeiro lugar”. Ora, não se admira que tanta gente evite esse tipo de ativista, por mais justa que seja sua causa.

Quem utiliza sentimentos de culpa ou vergonha para alterar algum comportamento — mesmo que seja para minimizar nossa participação na destruição da vida no planeta — está, ainda que de maneira sutil, reproduzindo a mesma ideologia responsável pela própria destruição que pretendia evitar. Recorrer a esse tipo de controle, especialmente sobre uma suposta maldade inerente ao homem, só reforça as mesmas noções de conquista e domínio que tratam o mundo como “recurso a ser explorado”.

Também vale questionar se o nosso conceito de “vida boa”, aquela que buscamos, conquistamos ou sacrificamos, é realmente uma vida boa — penso que não. Nos deixamos levar pela supervalorização de um minúsculo ego e seus desejos, e mesmo no ápice da saúde, riqueza e poder, quando os esforços para controlar tudo ao nosso redor parecem funcionar, ainda somos pegos de surpresa pelo “vazio existencial” dos momentos de tédio. No início, encontramos muitas maneiras de negar esse “vazio”, em geral buscando mais sucesso, poder e estímulos. Mas assim que as novidades se esgotam, nos deixamos engolir pela apatia.

 

O egoísmo em prol da restauração

Influenciados por uma falsa identidade reforçada pela cultura, criamos miséria em prol de mais controle e uma suposta segurança. Infelizmente, o auge do “sucesso” não proporciona intimidade, comunidade, autenticidade e propósito. Nos afastamos da beleza da vida em prol de um ideal de segurança, mas não recebemos sequer algo parecido em troca.

Imagine o quanto essa busca por segurança parecerá ingênua à medida que as crises alimentadas por um regime de objetificação e controle convergirem. Imagine o quão patético serão nossos muros, investimentos e currículos quando um desastre pessoal (morte, falência, prisão, etc.) nos forçar a colocar tudo em perspectiva para, enfim, enxergar o tamanho dessa ilusão.

Para reverter o processo de destruição da natureza, da sociedade, das comunidades e da nossa própria lucidez, não basta se esforçar pra ser alguém melhor. As religiões têm pregado isso há milhares de anos e não houve mudança alguma. E mesmo que a solução fosse essa, estaríamos fadados a uma eternidade de esforço e tentativas. Por que insistimos em acreditar que só se alcança a paz, a sustentabilidade e a bondade por meio de um interminável esforço contra nós mesmos?

É hora de quebrar paradigmas, se conscientizar e romper essa dualidade entre “Eu” e “outro”. Quando não houver “Eu”, exceto em relação ao “outro”; quando nos reconhecermos como um ser de relações, interdependente de outros seres e do meio, o egoísmo se transformará naturalmente num movimento de restauração.

2 comentários sobre “Gratidão ou egoísmo disfarçado?

  1. Só uma correção: antropologista -> antropóloga (quando se referindo à Ruth Benedict).

    E também uma dúvida. Não entendi muito bem essa parte: “Quem utiliza sentimentos de culpa ou vergonha para alterar algum comportamento — mesmo que seja para minimizar nossa participação na destruição da vida no planeta — está, ainda que de maneira sutil, reproduzindo a mesma ideologia responsável pela própria destruição que pretendia evitar. Recorrer a esse tipo de controle, especialmente sobre uma suposta maldade inerente ao homem, só reforça as mesmas noções de conquista e domínio que tratam o mundo como ‘recurso a ser explorado’.”

    Parece que há uma contradição entre o sentimento de culpa e vergonha, que nos leva a negligenciar a nós mesmos e colocar o outro em primeiro lugar à força, e as noções de conquista e domínio que, aparentemente, vem do egoísmo que a lógica de fomentar a culpa e a vergonha pretende atacar.

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  2. Oi Bruno, obrigado pela correção! Não sei de onde tirei “antropologista”… hahahaha Sobre a contradição, não tenho certeza se entendi o que você quis dizer. Vou tentar transmitir a mensagem de outra maneira, talvez nos ajude.

    Isso está mudando, mas muitos ativistas ainda recorrem a esse tipo de técnica de controle, uns pela vergonha — “Gente, olha só como ele é burro! Ainda não entendeu que destruir o planeta é se autodestruir.” — outros pela culpa — “Você é mau por pensar só em si mesmo, não percebe? Como pode se dar ao luxo de ser feliz enquanto milhões morrem de fome?. Minha intenção era mostrar que essa mentalidade de controle é a mesma que nos colocou nessa situação. Além disso, esse tipo de discurso só gera aversão em quem ouve, criando um bloqueio para entender a mensagem de “pense no próximo” ou “salve o planeta”. É a mesma tática do “se você não aceitar Jesus, vai pro inferno”. Isso não leva a lugar algum, a não ser uma vida de martírio e negação.

    Me corrija se não for isso, por favor, mas o que eu entendi da sua percepção foi o seguinte:
    A culpa e a vergonha nos levam a colocar os outros em primeiro lugar à força, então parece ser o oposto de egoísmo. Ao mesmo tempo, como é possível usar um discurso de dominação (incitando vergonha ou culpa) para dissolver o egoísmo, se o próprio discurso de dominação também é fruto do egoísmo? É como querer bater em todo mundo para acabar com uma briga.

    Se foi isso mesmo que você quis dizer, então você só deu uma nova cara ao meu argumento. É justamente essa contradição que eu queria deixar explícita, porque não adianta usar algo que vem do egoísmo para combatê-lo.

    A única observação que eu faria, só pra compartilhar minha visão, é sobre a culpa e a vergonha. Enxergá-las como um “altruísmo forçado” me parece eufemismo, pois não há nada de “nobre” ou “elevado” nos resultados, muito pelo contrário, há sofrimento, negação de si mesmo, passividade, diminuição da autoestima, um falso senso de responsabilidade pela felicidade alheia, julgamento, entre outras coisas.

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