Não confunda Ciência com Filosofia

A validação social: entre crenças e evidências

Nosso zeitgeist ocidental interpreta a realidade de forma materialista e dualística, pois sabemos que o Universo é composto por matéria e energia que surgiram num evento chamado Big Bang há 14 bilhões de anos. O “mundo lá fora” (a realidade), portanto, é “feito” da interação entre partículas subatômicas e energia. Essa crença é tão dominante atualmente que não enxergamos sequer a possibilidade de questioná-la, não é? Ora, se a busca pela verdade é da nossa natureza, sua força não se encontra na verdade, mas na busca.

O aspecto inquestionável e a hegemonia dessa visão de mundo (me refiro ao materialismo dualista) se sustenta na crença da elite intelectual, uma crença geralmente amplificada pela mídia tradicional. Como seres sociais, temos uma necessidade natural por aprovação. Sentir-se aceito e compreendido é um dos pré-requisitos para manter uma crença, e não há validação maior do que a oferecida por “estudiosos” e “intelectuais”. Normalmente, não percebemos o papel fundamental que essa necessidade de validação tem em nossas vidas: o conhecimento se tornou tão complexo que já não é possível, por conta própria, conhecer e ponderar sobre cada teoria, quem dirá sobre suas respectivas (falta de) evidências. Em outras palavras, dependemos de um esforço coletivo para cultivar um pensamento crítico e construir nossa própria opinião sobre as coisas.

Para constituir o que podemos chamar de realidade coletiva, ou consenso sobre a realidade, utilizamos uma epistemologia (a tal “busca”) cada vez mais restritiva e especializada. Ao mesmo tempo, a confiança se tornou algo essencial, pois precisamos confiar na capacidade de outras pessoas se quisermos desvendar “o mistério da vida, do Universo e tudo mais”. É precisamente nesse contexto, sob influência de especialistas, que adotamos, automaticamente, uma determinada maneira de interpretar a realidade. Afinal, se não pudermos confiar em cientistas renomados, em quem confiaremos? No vizinho?

Curiosamente, os tais “especialistas” são pessoas pessoas como eu e você, que também precisam de aprovação para construir a própria visão de mundo. Nenhum intelectual, independente de sua genialidade, é capaz de compreender todas as facetas da realidade. O problema, segundo Thomas Kuhn, é que as validações vão se restringindo a uma comunidade cada vez mais específica e, consequentemente, tendem a depender cada vez menos de evidências e mais de dinâmicas psicossociais.

Assim, cada um de nós participa de dois movimentos na construção de uma visão de mundo. No primeiro, contribuímos com a narrativa coletiva por meio da interpretação pessoal. No segundo, guiamos nossas ideias de acordo com a (falta de) aprovação que recebemos por parte da sociedade. Esses movimentos ocorrem a cada interação humana e, consequentemente, as visões de mundo predominantes acabam sendo mais divulgadas e mutuamente reforçadas.

 

A Ciência e o materialismo

Antes de abordar o assunto, é importante diferenciar o materialismo, no sentido de ontologia, interpretação da realidade ou metafísica, e os modelos teóricos da Ciência. O primeiro se propõe a explicar a natureza da realidade, o segundo, a reconhecer padrões e criar “receitas” para descrever o estado dessa mesma realidade.

Portanto, confundimos as duas coisas quando utilizamos dados experimentais, obtidos de acordo com o Método Científico, para validar e defender o materialismo como interpretação da realidade. Caso contrário, o materialismo não seria um fenômeno psicossocial, mas uma evidência científica. Dados experimentais só demonstram a validade de determinado modelo científico para descrever a realidade sob certas condições. A interpretação dos dados (subjetividade) é tarefa do cientista e sua visão de mundo.

Em resumo, o Método Científico é o que nos permite definir os padrões e regularidades da natureza. Uma vez identificados, criam-se modelos matemáticos a fim de descrevê-los e, assim, prever o que acontecerá. Essa é a “mágica” que sustenta o desenvolvimento tecnológico e contribui com o status de “autoridade” da Ciência.

No entanto, descrever é diferente de explicar. A Ciência é uma ótima ferramenta para reconhecer padrões e demonstrar como X e Y se relacionam, mas nunca foi (nem será) capaz de nos mostrar a natureza de X ou Y, por um simples motivo: a Ciência só consegue explicar uma coisa em função de outra. Esse caráter “referencial” da Ciência é útil para descrever, mas inútil para imaginar, criar e explicar.

Se resta alguma dúvida, tente explicar do que é feito um objeto qualquer, como um livro, por exemplo. Podemos ser cada vez mais específicos, falar em termos de moléculas, átomos, partículas subatômicas e energia, mas ficaremos sem alternativas quando não pudermos explicar do que é feito um quark ou uma corda, aquela da Teoria das Cordas. Esse “beco sem saída” é chamado de primitivo ontológico, a matéria prima irredutível da realidade. Em suma, capturar e descrever padrões são questões científicas, mas ponderar sobre a origem, essência e natureza das coisas é uma questão filosófica.

O problema é que os cientistas de hoje têm pouco, ou nenhum, conhecimento em Filosofia e, portanto, acham que a Ciência pode substituí-la. Isso tem enorme impacto na sociedade, uma vez que o número de cientistas na elite intelectual é desproporcionalmente maior — lembra daquela “validação” que precisamos? Assim, encantados por sua eficácia, acreditamos que o Método Científico é suficiente para explicar a natureza do universo e, como se não bastasse, assumimos uma interpretação metafísica da realidade (o materialismo) sem questionar. Supomos que essa capacidade (científica) de descrever como as coisas se relacionam também é capaz de nos dizer do que são feitas. Acreditamos que perguntar “como?” nos dirá “o que é”. Não te parece ingênuo?

 

A metáfora do videogame e o papel da introspecção

Vou usar a metáfora do videogame para ilustrar o parágrafo anterior. Ninguém precisa conhecer os componentes de um PC para jogar algo no computador, certo? Basta entender como os objetos se relacionam no jogo — o botão X faz isso, se chegar ali acontece aquilo, quando encosto lá perco uma “vida”, etc. Ou seja, não é preciso saber que existe CPU, ou como funciona uma memória RAM, para se tornar um ótimo jogador de WarCraft ou Fifa, por exemplo. O hardware transcende a realidade (virtual) acessível por meio do jogo e, por isso, estará sempre além do alcance de qualquer personagem, seja o Goku ou o Mickey. Analogamente, o Método Científico é limitado a um tipo empírico de acesso à realidade. A modelagem científica não requer nenhum conhecimento sobre o que está por trás do que consideramos real.

Neste ponto, o leitor mais atento deve estar se perguntando: mas como é possível ter acesso ao que está além da realidade? Para inferir esse tipo de coisa é necessário mais do que os métodos empíricos da Ciência. É preciso introspecção para perceber analiticamente não apenas o objeto, mas o observador, o processo de observação e a interação entre esses 3 elementos. Esse tipo de introspecção se propõe a enxergar além da realidade e, com a ajuda dos métodos da Filosofia, é capaz de construir uma metafísica — uma interpretação da natureza da realidade.

Temos muito o que celebrar graças à Ciência, mas já é hora de reconhecermos suas limitações. O materialismo científico dado como “inquestionável” só contribui com a falta de significado e espiritualidade — não confunda com religiosidade, por favor — do mundo que conhecemos. É hora de entender que a Física, apesar de tão útil e importante, só é capaz de criar um modelo que “simula o jogo”. Para entender como funciona um computador (a natureza da realidade), ou sequer perceber que ele existe, é preciso um método diferente, afinal, são questões metafísicas e filosóficas.

5 comentários sobre “Não confunda Ciência com Filosofia

  1. Entendo sua advertência para não confundir espiritualidade com religiosidade, mas me parece impossível não relacionar ela com religiosidade………..por ser uma derivação da palavra espírito, por exemplo………..enfim, acho que ela esta mal colocada, e que este trecho não faria falta no contexto.

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  2. Eu entendo a sua resistência, acredite. Sou filho de pais que já foram evangélicos, então você pode imaginar o que aconteceu quando comecei a perceber algumas coisas, né? 🙂

    Pensei em tanta coisa pra falar aqui, que dá até pra virar texto novo. Valeu pelo estímulo!

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  3. Eu gosto de pensar nisso, e por conseguinte, trabalhar isso, em outros termos: teoria x prática. Os dois são indissociáveis na busca, e dependem de uma boa balança, para não levarem a um simulacro do objetivo. Vivendo, aprendendo, interpretando, e reconhecendo. Tipo isso hahaha

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  4. Acho que a metáfora do video game peca ao desconsiderar que é uma realidade virtual é criada por componetes que existem numa realidade matriz e crua. E o saber, através do método científico, te faz sim ser um “jogador” do mundo real melhor, afinal é por isso que temos uma visão ampla de realidade hoje em dia (diferente da visão de um medievo, por exemplo). Entendo o verdadeiro cerne do texto, porém acho que uma visão científica e rígida é indispensável para se vir antes da perspectiva filosófica, dando a essa, objetos de estudos cada vez mais precisos.

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    1. Oi Lucas, valeu pelo comentário! Talvez eu não tenha entendido as questões que você levantou, mas acho que concordamos em quase tudo. A metáfora do vídeo game fala sobre dois “planos” diferentes, o virtual (do jogo) e o real (dos componentes do console ou do PC). A metáfora foi apenas um artifício para ilustrar a atividade da Ciência em nossa realidade. Portanto, concordo com você: somos “jogadores” melhores justamente por causa da Ciência. O problema é que a Ciência é incapaz de explicar a natureza da realidade, ou seja, de nos dizer do que é “feito” o jogo. Se puder, leia o texto novamente e você verá que estamos concordando.

      Sobre a ordem das perspectivas científicas e filosóficas, discordamos. Antes de realizar qualquer experimento, é preciso saber qual o objetivo (hipótese teórica a ser testada), quais dados podem ser coletados e, finalmente, qual teoria servirá como ponto de partida para a interpretação dos resultados. Em outras palavras, um paradigma (uma interpretação da realidade) é indispensável para interagir com o mundo e, sendo assim, a perspectiva filosófica sempre antecede a perspectiva científica. Eu falo um pouco sobre essa coisa de paradigmas num outro texto:
      https://introspeccaoexposta.wordpress.com/2016/12/16/o-vazio-de-uma-vida-sem-significado/

      Se quiser se aprofundar no assunto, recomendo um livro do Thomas Kuhn chamado “A Estrutura das Revoluções Científicas”.

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